Essa afirmação preconceituosa
é prima-irmã da ideia de que “brasileiro não sabe português”. Como o nosso
ensino da língua sempre se baseou na norma gramatical de Portugal, as regras
que aprendemos na escola em boa parte não correspondem à língua que realmente
falamos e escrevemos no Brasil. Por isso achamos que “português é uma língua
difícil”: porque temos de decorar conceitos e fixar regras que não significam
nada para nós. No dia em que nosso ensino de português se concentrar no uso
real, vivo verdadeiro da língua portuguesa do Brasil é bem provável que ninguém
mais continue a repetir essa bobagem. Todo falante nativo de uma língua sabe
essa língua. Saber uma língua, no sentido científico do verbo saber, significa
conhecer intuitivamente e empregar com naturalidade suas regras básicas de
funcionamento dela. Está provado e comprovado que uma criança entre os 3 e 4
anos de idade já domina perfeitamente as regras gramaticais da língua! O que
ela não conhece são sutilezas, sofisticações e irregularidade no uso das
regras, coisas que só a leitura e o estudo podem lhe dar. Mas nenhuma criança
brasileira dessa idade vai dizer, por exemplo: “Uma meninos chegou aqui
amanha”. Um estrangeiro, porém, que esteja começando a aprender o português,
poderá se confundir e falar assim. Por isso aquela piadinha que muita gente
solta quando vê uma criancinha estrangeira falando – “ Tão pequeno e já fala
tão bem inglês [ou outra língua]” – tem seu fundo de verdade: pouca gente
conseguirá falar uma língua estrangeira com tanta desenvoltura quanto uma
criança de cinco anos que tem nela sua língua materna! Por quê? Porque toda e
qualquer língua é “fácil “ para quem nasceu e cresceu rodeada por ela! Se
existisse língua “difícil”, ninguém no mundo falaria húngaro, chinês ou
guarani, e no entanto essas línguas são faladas por milhões de pessoas,
inclusive criancinhas “iletradas”. Se tanta gente continua a repetir que
“português é difícil” é porque o ensino tradicional do Brasil não leva em conta
o uso do brasileiro do português. Um caso típico é o da regência verbal. O
professor pode mandar o aluno copiar quinhentas mil vezes a frase: “Assisti ao
filme”. Quando esse mesmo aluno puser o pé fora da sala de aula, ele vai dizer
ao colega: “Ainda não assisti o filme do Zorro!” Porque a gramática brasileira
não sente a necessidade daquela preposição a, que era exigida na norma clássica
literária, cem anos atrás, e que ainda está a vigor no português falado em
Portugal, a dez mil quilômetros daqui! É um esforço árduo e inútil, um
verdadeiro trabalho Sísifo, tentar impor uma regra que não encontra
justificativa na gramática intuitiva do falante.
Texto retirado do livro "Preconceito linguístico"
Autor: Marcos
Bagno
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